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Tuesday, December 14, 2004

Desejo - Romeu e Julieta III

O desejo é uma parte incontrolável de toda uma vivência, seja ela transparente ou não. É a partir do desejo que alcançamos aquilo que nos permitimos a alcançar. É a partir do desejo que nasce a paixão que segurada por tempo indefinido desagua no grande encontro com o amor.
O desejo faz parte da vida de Rui. É ele que lhe demonstra que os sonhos são mais reais quando se evaporam da caixa mágica onde os conservamos e que um beijo, pode ser muito mais do que um beijo. Rui tinha desejos incontroláveis. Gostava de espiar as cozinheiras enquanto elas faziam aquele pudim que ele roubava inconsequentemente. Desejava um dia ser tão alto como o pai e ter alguém ao seu lado que lhe fizesse todos os pequenos mimos que recebia da mãe.
Rui era pequeno entre gente grande. Fora educado entre o manto de consequência que os seus actos poderiam ter para uma grande família como a sua e nunca esquecera uma das grandes máximas de Shakespeare, tudo que começa no erro tem, irremediavelmente, de acabar no erro, também.
Mas era o desejo que o movia, quando não estava em casa. A casa representava a formalidade que ele não podia pôr de lado e o orgulho que ele tinha de beber, a partir do momento em que se tornava um Ataíde.
Quem vive no Porto, sabe de antemão que a cidade tem regras e códigos pelos quais aqueles que a ela quiserem pertencer, têm de os seguir. Agustina Bessa Luís, na sua última e prodigiosa obra desmonta bem todo o feudalismo em que a cidade está submersa. E no Porto, há desejos escondidos em cada esquina, há espera de serem revelados. Desejo de possuírem o que não têm. Desejo de encontrarem o que não existe, desejo de fugir se alguma coisa não corre pelos ajustes.
Rui tinha o desejo de continuar a vida que os pais lhe destinaram. Talvez ser um bom advogado, entrar com uma bolsa de mérito na Católica, ser uma pessoa respeitada na fechada sociedade portuense, que é acolhedora para os que vêem de fora e não ficam muito tempo. Mas acontece que Rui, que como muita gente pequena, não faz esquissos de regras que tem de cumprir, não elabora mais do que sonhos de uma vida que não se sabe se há-de ser longa ou simplesmente comprida e descontrolada. Rui apenas desejava, nos seus sonhos, encontrar algo que o mantivesse fora daquela paz que o aterrorizava. Pedia algo com mais condimentos, que o fizesse saltar em frente aos convidados dos pais e vestir t-shirts em vez de camisas.
Poucos sabem que para sermos confrontados com algo, temos de estar inconscientes do inesperado. Só assim ele nos poderá surgir aos nossos olhos de alguma forma maior do que a aparente. No fundo o que Rui queria, era ter algo mais do que um nome. No fundo o que Rui queria, como todos nós era que o desejo que ele continha em si transborda-se para algo superior, algo de transcendente, algo que o apanhasse e o levasse desta realidade como se fosse apenas fogo que se extingue.
Rui, porque desejava era considerado promíscuo por quem o rodeava, porque não conseguia sentir paixão por nenhuma das raparigas que alcançava durante a noite, que também elas desejavam, mas elas acabavam sempre por amar. Está patente na constituição da mulher, que incute em si, muito mais rapidamente o conceito de amor por alguém, se este alguém não lhe der respostas acabadas de um futuro a dois. Preferem sofrer agarradas a algo, do que procurarem mais alguma coisa. O desconhecido mete-lhes medo e fazem-se receosas quando o têm de enfrentar sozinhas.
O que Rui queria mesmo, era algo que só via escrito nos livros, porque são eles a grande cilada para alguém que faz do desejo e do sonho algo mais do que uma base. Ele procurava alguém emblemático como lera em Hamlet, frio com coração quente. Enfim, queria encontrar a sua Julieta, num mundo com falta de ética, em que se criam novos mundos a partir da tecnologia sem barreiras ou limites. Entregou-se portanto, à busca ostensiva, na rua, na Internet e nas prisões, que são as almas da maior parte de nós. Perdeu as horas para entrar em casa, perdeu as boas notas que lhe permitiriam realizar e dar continuidade ao bom-nome dos pais e quando por fim desistiu, reparou que tinha procurado de olhos fechados. O desejo que o movia não era mais do que a simples vontade de viver e de permanecer pequeno entre gente grande, aos domingos quando a família se reunia.
"Um dia hei-de escrever um livro" repetiu para si próprio. " Um livro repleto de respostas materiais, para acabar com esta busca desenfreada a que as pessoas se envolvem. Um livro de respostas, só"
Mas respostas já ele tinha, dentro de si. Só precisava sentir desejo de as encontrar.
Enfiou os phones, à espera que o chamassem para jantar e do outro lado alguém lhe cantava baixinho, como é a voz dos pequenos sábios, hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.