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Tuesday, May 27, 2014

Streaming

Streaming

Não somos mais o que queremos. Antes, aquilo que esperamos não ter de enfrentar. Agasalhamo-nos na nossa própria força, vício que conquistamos, na leviandade que é não dar nada, com a certeza de que tão pouco se espera o que quer que seja.
Já sabíamos que iria ser assim, quando pedimos a vodka bem gelada e nos perdemos na pista, durante mais um sábado. Juramos todos os dias que vamos ficar sozinhos, não acreditamos em fantasias pegadas, porque essas, só acontecem no ecrã do mac, quando assistimos ao One day em streaming.
A vida passou a ser em streaming e o amor não existe. Preocupamo-nos antes, que ninguém nos tente enganar, criar falsas ilusões, porque afinal já sabemos àquilo que a vida sabe. Uma bebedeira e com sorte e alguma libertinagem, talvez uma cheirinho a erva.  Não nos entregamos, a não ser ao prazer de não termos aquilo que na verdade, não queremos. Preferimos acreditar que somos demasiado complicados, que a vida e a crise económica e por ventura, o Passos, nos tiraram as forças e não temos dinheiro para arrendar uma vida a dois.
O amor passou a ser em streaming. Ligamos, usamos e depois, apagamos. Não há luta, não há resposta e a mensagem nunca será entregue. Porque a complexidade do nosso interior, termina com a inocência do sorriso mais próximo. Já cheiramos os lençóis variadíssimas vezes; um pequeno-almoço de madrugada, e o reset a fechar o dia.
É essa doce solidão, uma aplicação de telemóvel a fazer as honras da casa. Queremos sexo, podemos criar. Inventamos a paixão durante uma semana, e depois, ficamos com o sofá vazio. As pessoas são todas um mosaico daquilo que procuramos, mas nem isso nos chega. Queremos receber a imagem dos campos de alfazema e talvez quem sabe, sonhar um pouco com eles, a ver se fugimos. Isso lá é bom. Um corpo perfeito de uma sexta-feira, mas que não nos chega para apresentarmos aos papás, vestir a mini-saia e sair para a rua. Hoje somos todos livres e ninguém há de acabar com isso.
Quando finalmente nos ajoelhamos, não nos entregamos. Olhamos para trás (ah essa melancolia do passado que tão traiçoeira como irresponsável) e esperamos que nada se repita. Amordaçamos a boca, cruzamos os braços. Os abdominais hão de fazer o resto. Mas com classe, com admiração, como aprendemos no wareztuga, que ainda há mais 10 rapazes entre os 20 e os 30 num raio de cinco km, para o caso de estar tudo errado e o meu filtro não ter funcionado.

Se começa, impomos os limites básicos. Não há esperança, não há escolha. Vamos seguir a vida, como duas criaturas entre dois passeios separados, que se hão-de cruzar a meio, para logo se afastarem, caso as notificações no wazzup estejam a funcionar e ninguém nos convidar para um café, ali mesmo.
E depois se nos apaixonamos, há que ter cuidado. Não há familiaridades com os amigos e há-de ser tudo à nossa maneira, para que quando termine, estejamos com o orgulho estampado na cara e a certeza de que tudo funcionou, menos a outra metade. Que não é mais nossa, há-de ser de outro alguém. Falava muito, perguntava exaustivamente e no final, ainda cobrava a atenção. Por momentos, achamos que passamos a nossa virose e essa imagem é a maior foda com a qual nos poderíamos deparar. Mas afinal, como é que nos estão a fazer o mesmo, que nós apregoamos no começo? Não, isso não acontece, não existe. Somos responsáveis, mas é dos filhos que teremos, sabe-se lá com quem. Não nos suportamos, como vamos agora submeter À imagem que recriamos?
Sabemos que é injusto, mas então a vida foi escrita assim, e os Romanos já o sabiam. E nós ainda temos muita vodca para bebermos. Muitos amores para ler e inimigos para fazer. Viemos da aldeia e só agora estamos a despertar para as luzes, a cor e a sensação que é o desejo por entre as portas da cidade. Mesmo que a tesão tenha acabado aos 30 e culpada seja a bebida e o tabaco, quando no final, foi a vida que nos foi roubada, enquanto nós andávamos a roubar as ilusões de um filme de domingo.
 No sofá.
Lá fora a chuva. Frio. Queremos companhia. Ficamos em casa, ligamos a lareira estalamos as mãos e o facebook a fazer de cupido imortal. Alguém há-de aparecer. Ficamos no quentinho, agarradinhos. É perfeito.
 No Verão, as complicações são muitas, os amigos estão todos na esplanada e eu quero é mostrar as perninhas e esperar que alguém veja as minhas.
Talvez ninguém me pergunte mais nada, porque responder, respondemos aos polícias, se estiverem fardados e aos juízes se formos apanhados. De resto, a contribuição é nula, mesmo que tenhamos jurado que a honestidade está sempre em  primeiro lugar, porque é isso que esperamos dos outros, sempre com fê de que não esperem o mesmo de nós.

Há sempre o streaming, o amor entre uma mensagem e a solidão a terminar. A nossa vida está em primeiro lugar. Não nos vamos sacrificar pelo resto, não vamos lutar, nem sequer intencionar. Os outros que percebam. E se quiserem fazê-lo, que o anunciem com a certeza que é porque querem, porque precisam, sem esperar nada em troca, porque o meu streaming não tem  conexão suficiente e o meu tom não é arrogante, é real e personifica as minhas cordas vocais, como as da Whitney, antes de acordar cocaínada.

Tuesday, April 08, 2014

Cheio

Cheio

Não se conheciam.

Fingiam que os corpos eram apenas o interesse mútuo, pelo silêncio que a vida tantas vezes representa. Por isso mesmo, não queriam ser nada um do outro. Não se conheciam, não se tocavam, mas fingiam. Era essa liberdade, por detrás de um olhar despercebido, um toque sem mágoa.
Não havia dor, não havia violência. A vida era aquilo. Era isto.  Uma luz sem cor, um sorriso dentro de um jardim.
“Não é como começa, mas sim como acaba”. As frases soltas, como se tivessem sido escritas pelo Saramago, enquanto bebia um café pingado com a Pilar. Não saberia nunca quem seria o Saramago. Não quereria tão pouco. Escrevia o nome, porque lhe pediam, na fábrica. Todos os dias, algum papel para assinar. Papel timbrado, papel que não lhe pertencia, mas que representava tudo aquilo que ainda não tinha perdido.
E assinava sempre Fernando  Antunes.  Uns dias pior, outros igual. Melhor seria uma ilusão. Era tudo o que sempre quis escrever. Sem mágoa, sem tristeza. Mas a vida tinha deixado de ser isto.
Bem ali, no jardim, onde escolhera ficar. Drogado pela beleza, que é não ter que esperar mais nada da vida, a não ser que fosse levado. Talvez para um mar, talvez um pouco profundo. Era isto.
Não tinha saudades dela. Quando ela morreu, não chorou. Era um homem e a vida ainda era aquilo. Não se importava com as escolhas, deus havia de tornar tudo certo, não estava preocupado. Estava cheio com as memórias que ainda tinha para idealizar. Com o futuro que nunca chegou e que por isso mesmo, não o decepcionou. Deixou de ir para a fábrica, não por ela ter morrido -sim morrido, as pessoas fazem-se de vida, mas também de morte. Não é duro, não é complicado. E algumas nem chegam a saber o que isso é – mas por entender que não havia mais nada para além disso. Sobriamente, a flutuar, a sentir-se inebriado por finalmente não precisar de mais nada, para além daquele jardim.
Quando adormecia, não voltava mais. Mudou-se para o maior quarto da casa, onde sempre se encontrava. Precisava de sonhar, mas sozinho. O contrato que tinha assinado, já nada representava. Lembrava-se ainda: “Sim, aceito”. Ali, na presença de Deus e dos apóstolos em que não confiava. Todos vestidos com as melhores roupas, que ele pagou. A comer da melhor comida, que ele também pagou. Serenamente a beber o vinho e a olhar para a sua esposa, que ele também pagou.
“Dinheiro compra tudo”. Era o pai, forte como ele, que o orientava. Agora, também ele tinha sido enterrado, pelo que não havia mais a quem dar esperanças. A esposa – como sempre a tratara- continuou no quarto antigo. Sem mágoa. A vida também era isto para ela. Continuava bonita, carinhosa e cheia de tudo. Sabia que ele nunca a tinha querido verdadeiramente, mas agradecia-lhe por nunca o ter demonstrado verdadeiramente.  Estava cheia,  morta, por ela ter morrido finalmente e por poder descansar. Em paz.
Lembrava se de ter encontrado as flores. Uma fotografia. Uma assinatura. Antónia. Sabia que era um nome feio, mas não conseguiu deixar de achar uma certa graça - A mulher que ela nunca seria, tinha um nome bem mais feio do que o seu. E por isso mesmo, quando ela morrera e ele saíra do seu quarto, com as flores, as fotografias e um soluço de solidão, ficou cheia.
Ele quando levou as flores, já estava cheio. As que lhe dera, antes de ter de aprender a escrever o nome e ser apoderado por essa responsabilidade, que é gerar mais do que aquilo que se suporta. Recordava-se vagamente de nunca lhe ter tocado, mas de a ter sentido. Enquanto fugiam e contavam histórias que nunca ouviram antes. Imaginação e a partilha ser apelidada de amor e paixão. Não havia sexo. O desejo é para os incautos, a fome para os que não estão saciados. E aquela vida deixava-os cheios. De tudo e de nada.
“não poderemos estar juntos mais”.
“não apressemos o destino. Isto ainda é muito.”
E foi assim. Nunca mais falaram.  Nada mais comentaram. Ele começou uma vida nova, com alguém que poderia estar ao seu lado, nessa vida de luxo e seda, que ela não poderia partilhar nunca. Garfos para refeições, empregadas que ela nunca saberia orientar, contratos que nunca saberia assinar.
Trabalhou na fábrica. Nunca se falaram. Estavam cheios, entre o ruído das máquinas e ainda conseguiam saber o que sentiam. Que a vida era aquilo, mas que a incerteza que a morte traria, poderia resultar num reconcilio com a felicidade.  Como se a vida fosse sobrevalorizada e o resto, o que vem depois, é que contasse.
Quando ela finalmente desapareceu, enterrou-a com os ramos azuis, de alfazema, que ela sempre lhe trazia, quando ainda eram jovens e ele não sabia escrever. O seu nome.
Ali, no meio daquele jardim, sabia bem o que queria, sabia bem o que esperava. Estava ansioso por saber afinal, como acabava.