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Tuesday, August 03, 2010

Instrumento


Agarro-me a esses olhos e sei bem que não é este o meu papel.
Sento-me defronte do piano, enquanto balanças, ora para trás, ora para a frente.
São tantas as vezes, em que imagino que te deitas sobre mim, enquanto deixo que a música me leve para bem longe e consigamos perceber, por fim, que somos livres, sem planos ou materializações de ideias imaginárias, a rebentar, por dentro da boca que se esquenta e se funde.
Nessa espuma baça, enquanto deslizo os dedos e me imagino a engolir-te num só sopro, bem por dentro dessa pele que se rasga, enquanto me revejo a apertá-la. Não é a música que me faz levitar, é a possibilidade de acreditar que um dia, ainda te posso tocar.
Não tenho mais nada sobre mim e tu não consegues imaginar a imensidão de sonhos que construi a pensar na tua essência, grossa, fraudulenta, eterna em mim.
Desejar-te é imaginar-te. Querer-te seria pensar em calar-te, finalmente e encostar-me sobre ti.
Ninguém sabe de nós, na minha consciência. Aprendi a reprimir essa excitação, bem por dentro das calças, por detrás da imensidão deste instrumento, que é o piano.
Às vezes, imagino que toco sobre ti, que te possuo dedo a dedo, por entre as tuas costas , até chegar ao pescoço e completo-te nua, nessa exclusividade que é poder sonhar contigo, acordado.
Olha para mim e diz-me o que vês. Larga esse copo e abraça-me, acalma todos os desafios que sei que a idade não me permite atingir. Leva-me para onde pertences e finge que sou teu. Como eu finjo que és minha.
O momento passa nesse instante derradeiro em que percebo que te vais e que só voltarás dentro de longos e imensos momentos. Um momento pode equivaler a uma semana, dependendo se me encontro contigo, nesta sala, de onde retiro cautelosamente as fotografias do corpo que adormece comigo, todas as noites, na esperança que te esqueças que já fui abençoado por Deus, noutra união.

Vens aqui para cantar, então canta para mim, deixa que te embale e que penetre nesses olhos verdes, que ainda hão-de ser a causa maior da minha existência. Deixa que desvende e encontre esses segredos, bem por dentro desse decote, que finjo não existir.
Como se fosse o Stevie Wonder e não me interessasse mais do que a porra do piano, à qual estou aprisionado. Tornou-se um fardo e no entanto é a única forma de me imaginar a reter-te, mais materialmente.
Todas as quartas, todos os sábados. Dois dias por semana, duas horas por dia, duas formas de me manter acordado.
Há dias em que sonho que destruo a porra deste instrumento, com um machado, com os dentes (sei lá), tal é ânsia de que tu me vejas, finalmente.
Tu e as tuas formas desajeitadas, o teu andar meio infantil, o teu sorriso meio falso.
Será que és feliz?
Imagino-te algumas vezes, a chegares a casa, a adormeceres, a ouvires qualquer coisa na rádio (as pessoas da tua idade ainda ouvem rádio?), pequenas coisas, que é disso que a minha paixão infantil é feita.
Pequenos sonhos molhados, o corpo a perguntar-me o que se passa, a querer que lhe toque e eu dentro de uma deambulação de pequenos estrabismos, a satisfazê-la, entediado a pensar que ainda é segunda-feira. A fechar os olhos, a esquecer-me quem fui, a ver se consigo renascer ao teu lado. A ver se não explodo, a não ser dentro de ti. A ver se adormeço dentro de ti.

Amanhã já é terça.