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Tuesday, May 26, 2009

Sozinha

O cabelo na frente dos olhos e uma vontade de engolir o mundo com um só gesto. Enquanto procura um significado para o percorrer vazio das mãos que já tocaram o céu, tantas vezes, consome o silêncio com a certeza de que o tempo dura um cigarro inteiro.

Gesto compenetrado
A encontrar a inocência da idade
Onde a ilusão nunca se torna em algo real
E tudo se desfaz, eventualmente.
Tudo.
Não previa o desfecho do acontecimento marcado pelo fim do início, como se tudo fosse uma contradição daquilo que realmente queria, daquilo que realmente sentia. Não conseguia perspectivar mais o futuro, nem sabia consertar o passado. No seu presente, vivia a felicidade de estar triste, enquanto a chuva caía suavemente por entre o carro e a segurava com a palma da mão, como já seguraram em sim. Por si.

Revia agora todos os factos e os acordes com que construiu a partitura que parecia ter agora um final pouco precipitado. Não conseguia suster em si a infelicidade de não ser perfeita e de ter falhado, novamente. De se espalhar por entre o cheiro da erva molhada junto ao mar e de continuar a partir-se enquanto gritava num silêncio surdo. Silêncio impenetrável, onde nada estava bem, onde nada se segurava, onde nada perdurava. Fechava os olhos e não desaparecia. Imagens ténues de fragmentos roubados por câmaras alheias, visões de uma felicidade conjunta que não partilhavam mais. Perguntava-se ali mesmo, para onde iam esses momentos alheios aos problemas do resto do mundo. Se perdurariam na eternidade à espera que alguém os concluísse ou se tornassem apenas pó por entre a rotina do dia que se avizinhava. Fechava os olhos e sabia que nada ficaria bem, não naquele momento, talvez nunca.

Talvez nunca, numa terra bem longe
Memórias suspensas por lampiões estragados
Casas desabitadas, opostas à culpa de não sentir vergonha
Por entre o resquício de vida que existe em todos nós
Onde tudo se quebra, onde tudo se perde
Onde nada se substitui

Era desconfiada e não sabia o que fazer com isso. Queria apenas sentir o peso da chuva por entre os dedos e esperar que tudo terminasse no momento em que esperava, mas não conseguia. Não sabia como tinha começado, nem sabia se teria acabado. Tinha-se perdido por entre o caminho de querer ser eternamente feliz e não sabia quem tinha apagado a luz, que fez com que nunca mais conseguisse voltar ao rumo correcto. Divertia-se nos últimos tempos a ter pena de si própria e esperar que fizessem alguma coisa por ela, a ver se valeria realmente viver com uma alma tão pequena, como a sua se havia tornado. Desconfiada da sinceridade de qualquer político, resignada finalmente, por aquilo que a vida lhe dava, desiludida com os fazedores de sonhos, desapontada com o som da porta a fechar.
E eis então que recorda o pânico em câmara lenta a despontar de dentro de si e as palavras a correrem a sua consciência como se o mundo tivesse acabado ontem e ninguém a tivesse acordado para assistir. Tinha-se esquecido do nome que lhe haviam dado, tinha-se esquecido de sonhar e esperava agora fechar os olhos e pensar que tudo haveria de ter sido um engano e ninguém haveria de voltar a fazer as coisas como delas se lembrava. Havia de confrontar as peças espalhadas pelo chão de todas as forças que acabava por perder. Havia que defrontar a derrota mesmo defronte dos seus olhos, perante buscas intermináveis a fantasias rebulescas e pesadelos a meio da noite, suores e tremores, tudo a buscar o calor da companhia que a acalmava de cada vez que sabia que a realidade era melhor do que o sonho que tantas vezes idealizara. E por isso havia deixado de sonhar.
E por isso, tinha-se esquecido de sonhar de todos os detalhes que haveria de enfrentar um dia e que haveriam de fazer dela a mulher mais forte das constelações. A princesa que o pai fazia questão de criar no reflexo do seu espelho partido, enquanto era criança e da inveja que a mãe sentia de cada vez que ouvia canções deste género.
Ela lembrava-se. Lembrava-se do desprezo materno, da fugacidade da ternura que eventualmente recebia, quando não se sujava e era perfeita. E ela nunca era perfeita. Ela lembrava-se do que havia passado para conquistar o sonho ideal, a figura eterna que se deitava consigo e que agora não estava mais ali. O afastamento dos pais, a vergonha estampada no olhar do pai. Já não era mais uma princesa.
Agora, tinha perdido tudo, menos a vontade de chorar. Mas era apenas mais uma vontade, como voltar atrás e fazer tudo perfeito e talvez assim, ter alguma ternura devolvida e talvez desta forma, não ouvir o som da porta a bater e o desespero a despoletar. Uma ida à janela na esperança que voltasse atrás e a perdoasse, mas nunca aconteceu e ela ficou sozinha, entre a relva que tinham plantado as duas e o amor que não tinham escolhido. Era desconfiada e nunca tinha sido compreendida na totalidade. Nem mesmo ela. Agora, não havia nada que pudesse fazer. Queria apenas que tudo fosse claro, que ela voltasse e lhe dissesse que não tinha motivos para ter agido como teria agido, mas que não importava agora. Só importava a intemporalidade do sentimento estampado por entre juras de amor simples.
“ E que faço eu com tudo isto? Onde coloco todas as certezas até aqui sentidas ? gostava de a fazer voltar, de a fazer entender a inocência perdida entre a vontade de querer se mais humana diariamente. Espero que não se esqueça de mim, entre amanhã e daqui a um mês. Espero que tudo volte ao normal depressa. Espero tanta coisa de mim, espero tanta coisa de quem está comigo…”
Não sabia mais de quem era a culpa, sabia que não poderia fazer mais nada, por entre o reflexo da falsa princesa, agora sozinha. Não sabia também, o porquê de tudo não ser tão fácil como nos filmes que o pai a habituara a ver e acreditar, “pai, isto é mesmo assim?”, e ela acreditava, sempre. Amores que quebravam guerras e fronteiras, para no fim perceber que era tudo treta. “ Pai, estou apaixonada. Chama-se Clara”. Clara era a desilusão espalhada por entre a postura do pai e a decepção da própria perante aquilo que perspectivava. Afinal, nem tudo era possível e o amor também pode ser julgado.
Entre o passado e o futuro
Há sempre uma dor presente, que anuncia
A chegada da velha memória.
Chama-se insegurança e vem de longe,
Chega sem avisar a abraça-nos, faz-nos sentir confortáveis.
Mata-nos.
Matou-a.

Enquanto adormece, por entre a chuva, lembra-se de já ter adormecido assim. Sozinha.