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Friday, October 08, 2010

Cor Morta




Preto e branco.
Não há lugar para o cinzento, objectos mais ao menos maleáveis, sentimentos neutros.

É a ilusão onde todos os dias acontecem, todos os dias, como se tratasse do tudo e do nada, constantemente, entre paredes pintadas de alfazema e cores sujas. Absolutamente negras.
Há dias em que me arrasto e que espero que sejam os últimos.
Não sei mais de que cor é o ar que respiro, as cores do chão, as cores que piso, as cores que nego à exaustão, tantas vezes não querer respirar.
As cores da tua vida, as cores da minha vida. Vida extinta.
Nossa.


São os lençóis brancos, aos quais me agarro, os mesmos com que te cobrias e rias, entre sintéticos e algodão, como se a vida fosse não mais do que simples partículas envoltas numa gravidade repleta de pura mentira. Como se o corpo fosse mais do que matéria e pudéssemos levitar nessa mesma…mentira.



- Agarra-me.



E deixo-te cair, nessa mesma falta de força e indignação, que me deixou incapacitado, meio morto. Nesse incumprimento, faltas promessas que me içam e me sufocam de cada vez que recolhos aos meus lençois e me revejo na tua ausência.


Vivemos todos os dias cansados por múltiplas informações, sinais de trânsito que nos levam a lado nenhum, esgotados pela falta de amor que recebemos, pela falta de amor que um dia (muitos ainda descobrirão), ainda sentiremos.


Vivi sempre na constante de que há dias que são "o" nada, ao invés de acreditar, que afinal, todos os dias, são dias que acontecem.
Chegar a casa, despir-me e fazer amor contigo, por entre esses lençóis brancos onde te rias à, minha espera. Acontecer o desejo que é poder tocar-te novamente e esquecer a útima sexta que te agarrei.

Eu na ânsia de chegar até ti, eu no emprego, eu cansado. “No sábado é que é”.



- Agarra-me.



E eu agarrei-te, bem dentro de mim, a meter a tua pele bem dentro da minha, como se o sexo jamais tivesse servido para outra coisa.


Deito-me agora, todos os dias, com a tua pele presa na minha, a agarrar-te. Vezes há, em que choro, como no primeiro dia em que entrei para a escola e o António Pedro me roubou o pãozinho de leite. Era o meu favorito.
Agarro-me e choro. A ver se me ouves e se me perdoas, se me encontras nessa cor morta que tomou forma em mim, desde que não te consegui agarrar todos os dias.


Imaginamos e criamos a imagem das pessoas que perduram na nossa realidade, diariamente, deixando de conseguir encontrar nelas, a evolução da nossa própria existência. Dados adquiridos, cores pálidas, quase inexistentes, por fim.



“Anda deitar-te comigo”.
Não podia. Sábado é que era, iamos jantar à Casa Aleixo e ainda bebíamos um porto no Solar dos Vinhos e íamos esquecer os empregos que nos segregavam, mas que nos mantinham.
Tu, perdida na tesouraria de uma autarquia, sempre a acrescentar números às contas que fazias, para salvar uma função que de pública, tem cada vez menos. Uma função pública adormecida, invisível, perdida na tradução do seu próprio conceito, que seria inevitavelmente, trabalhar em prol das necessidades, dando uso pleno ao conceito de subsidariedade.

Eu, eu nos planos de marketing e nos briefings que me faziam adormecer sem sono, a tentar encontrar ideias em que o orçamento fosse baixo e a ler o post-it do meu chefe "aqui não pode haver gato".



“Anda deitar-te comigo”.
Não me apetecia. Deambulavam na minha consciência, publicidades espalhadas pela cidade que nos transportariam para ambientes seguros e delicados, onde não haveria necessidade de criar anúncios tão inexplicavelmente bem sucedidos, como o que imaginei, quando íamos a caminho de Marvão e fiquei sem um pneu.
Tu eras a minha Marta, aquela que me socorria e me fazia viajar, para bem longe e me tirava a algemas do sexo, me libertavas, para depois (e só depois) me voltares a prender.


Às vezes ligo-te, durante a noite, a ver se brincas comigo e me fazes rir novamente. “Ok teleseguro, fala a Marta?”, mas apesar de saber que essa não é a cor da tua voz, deixo-me ficar horas, em cima da cama, onde o oxigénio se confunde com a intensidade do odor do meu bafo.

Perdi demasiados planos conjuntos, a tentar estabelecer as imagens da vida de outras pessoas, que nem sequer existem, mas atraem milhares de pessoas, quando só tu eras real, em mim.
Tu a cozinhar, na tua ilha, com o copo a escorregar, as sirenes a perseguirem-me, um senhor a tentar afastar-me, o teu sangue perdido entre destroços e eu a tentar agarrar o copo.
Cheiro-o, degusto, saboreio, bebo por fim. Volto a ligar-te e rio-me sozinho.

Tem o teu cheiro e uma cor suave que me entontece. E choro, como a criança que sempre fui, a ouvir a mamã a gritar “não fizeste os trabalhos de casa? Há tempo para tudo”.
Não há tempo para quase nada, a mamã mentiu-me. Por isso choro, porque já não me resta nenhum contigo. Pelo menos enquanto as sirenes ecoarem na minha consciência, perduro para ti, embora não ouça o teu riso nos mesmos lençóis de onde nunca deverias ter saído. Brancos.


Quando já não sentimos, acordar, é sempre o mais difícil.



- Agarra-me.
E eu preguei-me à tua mão e ri-me para ti. Não te podia deixar ir para lugar incerto, sem que levasses de mim o melhor sorriso, aquele que te deveria ter dado todos os dias.
Às vezes acordo e imagino que te salvo, que recolho os restantes carros que se fizeram, em câmara lenta, massa única e cinzenta e te agarro. Consigo ser um herói, ao menos por um dia.
Às vezes acordo e imagino que te salvo. Todos os dias.