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Saturday, March 29, 2008

Júlio - o espreguiçador

Ele precisava de se espreguiçar embora raramente pedisse permissão, para o que quer que fosse, afinal.
Muito embora eu gostasse de contar ou sequer começar esta estória com outros atributos, é este mesmo que representa a personagem na sua plenitude, arriscar-me-ia a dizer.
Imaginem o que é alguém ter a vontade inusitada de se espreguiçar em qualquer lugar que fosse, independemente da ocasião e da força da tradição.
Ele era assim, mal criado, dirá o leitor, mas terá de concordar que há coisas bem piores no mundo, hábitos moralmente muito mais devastadores do que um simples espreguiçar, mas ainda assim considerado politicamente incorrecto.
De facto, nada disso lhe interessava. Deliciava-se com este acto tão natural e simples e via nele toda a sua fonte de prazer diária. Pensava que ainda bem que se tinha encontrado a si próprio nessa simples condição, ao invés de fazer como o resto do mundo que o faz buscando drogas,alcool e muito sexo à mistura.
Os seus passos eram entediantes e havia muito pouco nele de respeitável. Tinha muito pouco apego à aparência e também pouca noção de estética ou sequer de estilo.
Ele era assim, sem ter mais nada de interessante para contar ao mundo, a não ser que se corrompia a si próprio nesse profundo acto que para ele era bem mais do que desinibido. Era sexual, era lascivo, era impróprio e fazia dele o seu próprio patrão, naquele momento.Sentir o corpo a contorcer-se, a engolir-se a si próprio, sentia que a sensação de morrer devia ser muito idêntica, já que muitas vezes parecia que saía de si próprio e viajava durante um pouco mais de tempo.
Ele não tem nome porque não interessa a ninguém, ainda. Ninguém se vai interessar por alguém que encontra prazer em pouco mais do que um franzir de músculos e sangue no cérebro.Ninguém vai querer ouvir, ou sequer saber que existe alguém tão medianamente insuportável que toda a sua felcidade, ainda que momentanea, resida nessa parca funcionalidade (entao não?!)
Tão pouca diferença lhe havia de fazer. O seu objectivo era aguentar o momento em que sentia o seu corpo a flutuar o maior número de segundos seguidos e claro, a sua maior frustração, também.
Não entendia nem compreendia porque é que o prazer não podia ser segurado ou mantido. Perdia-se nesta incompreensão por tempos longos e compridos e sabia que nunca haveria de encontrar solução para este problema.
Sabia apenas que estava viciado e que vivia para este vício, que não se importava em mantê-lo, apesar de já lhe ter trazido grandes dissabores.
Pensava ele, quando pensava, que as pessoas julgavam quem queriam e quando queriam, porque muitas haviam-se afastado desde que ele tinha adquirido este hábito.
Às pessoas fazia confusão esta intolerância aos bons costumes e regras de sociabilidade que nos ensinam desde muito novos. Na cultura europeia, estas maneiras são tidas como algo pertencente ao terceiro mundo, mas ele não compreendia muito bem porquê, já que não interferia em nada com a pessoa que estava ao seu lado.
No seu raciocínio, um homem que bebe torna-se insuportável porque a bebida provoca comportamentos incontroláveis e inesperados em quem bebe, o que invariavelmente não é algo positivo. Compreendia também que alguém que consome qualquer tipo de droga possa ser visto como um perigo, já que tinha ouvido muitas histórias de mães a quem tinham roubado cordões e pulseiras de ouro pelas mãos dos próprios filhos e mesmo o tabaco provocava doenças, mesmo em quem não fumava, embora isto fosse um bocado difícil de acrdeitar, para ele.
Na minha opinião de narrador solitário, mas presente, as pessoas tinham apenas um certo desconforto em nunca terem conseguido compreender que através de algo tão simples e quotidiano, se poderia retirar dividendos tão bons e rentáveis.
E de dividendos entendia ele. Ele, o nosso espreguiçador-sexual-profissional ( e digo nosso, porque o partilho connvosco) era ajudante de merceeiro. Quem não sabe o que é merceeiro pode-se considerar um tanto ou quanto ignorante, porque faz parte da cultura popular rural, na qual o nosso país está ainda mergulhado, embora ninguém tenha dado aparentemente conta disso.
Já agora, valerá a pena continuar a dar a minha opinião em relação ao incómodo das outras pessoas. Residerá também no facto de ele ter um certo controlo no seu espaço e tempo, impondo as suas próprias regras e noções na vida que levava.
E nem sempre fora assim.
Em pequeno,apontou pela primeira vez para um chapéu que vira pousado na cabeça de uma mulher, na sua opinião estranha, em plena missa de domingo.
Era vermelho e reluzente, lembrava-lhe um pouco as carnes do talho do seu tio, que ele via cortar com grande proeza pessoal. Naquele momento, esqueceu as orações que fazia apenas por fazer, para se concentrar no grande e enorme chapeu que rodava toda a cabeça da mulher. Como não tinha grande sentido de estilo, nem se apercebeu do facto da dita cuja vestir um conjunto verde alface e usar chapéu vermelho.
Vermelho Sangue.
Carnes, o talho, o tio a desfiar e ele a olhar encantado.
O chapéu que dava toda a volta à cabeça da mulher, loira que viria a saber depois por culpa de uma leitura que a dita mulher fora fazer, usava uma sombra azul marinho, como se do mar, tivesse acabdo de sair daquele momento.
E novamente o chapéu, como se de um chouriço se tratasse, dando a volta à cabeça, e ele a olhar enternecido.
Como qualquer criança com sete anos de idade, ele teria de fazer daquele momento, o momento mais especial do dia, quem sabe da semana. Mas para isso, era necessário que alguém visse o que ele via, da maneira que ele via. Era necessário partilhar.
Hesitou. Afinal, só adultos o rodeavam e provavelmente não entenderiam o que ele via. Os adultos não entendem muitas das coisas das crianças e embora ingorante, era observador o suficiente para já se ter apercebido disso mesmo.
Concentrou-se o bastante para guardar aquele momento na sua memória o mais impiamente possível, a fim de o poder partilhar com os amiguinho com quem partilhava os cromos das batatas fritas.
Mas não conseguiu.
Enquanto alguma voz solene tentava agitar os demais crentes, ele continuava impressionado com o chapéu, de abas largas e poderosas, as maiores que já tinha visto.
-Mãe.
Nenhuma reacção. Os adultos têm destas coisas. De vez em quando, fingem que não ouvem, apenas para terem a ilusão de que permanecerão intactos para sempre e não serão importunados.
-Mãe.
Segunda vez. Já não dá para ignorar.
Até porque era uma vergonha. Uma mãe, mesmo que costureira, não vai deixar um filho falar no meio de uma missa de domingo, onde se encontram as pessoas mais importantes da região e onde se fazem as maiores fofocas que depois são comentadas durante a semana na boutique do centro.
-Não sabes que não podes falar?
É de facto uma resposta inteligente, que qualquer adulto poderia ter dado, não pensem que é pelo facto de ela ser costureira. Então, quer que o filho se cale e responde-lhe como uma pergunta?
Ele que apesar de ter tido uma educação, até então – e até sempre – baseada na televisão e na professora que aparecia de vez em quando na escola ( toda a gente tem os seus problemas, não é?), respondeu-lhe. Afinal, não era de bom tom deixar alguém sem resposta, e a sua educação, ainda que pobre a nível cultural era assente em grandes valores tradicionais. Pelo menos era o que julgava.
-Sei, mas...
-Diz rápido.
Rápido. Rapidamente a mãe costurava uma camisa, rapidamente fazia de umas calças uma saia, tudo era rápido naquela secção da casa. A mãe andava rapidamente de um lado para o outro, tentando dar vazão a todos os pedidos que lhe faziam, uns mais estranhos outros mais banais, mas sempre rapidamente. Era a palavra que sempre ouvia as clientes da mãe dizer, “por favor, que seja rápido” ou “ o mais rápido possível”. Com a mãe tudo passava rapidamente, menos a missa ao domingo.
-Aquele chapéu, é tão...
Não quis saber as características ou o porquê do chapéu ter chamado a atenção do filho, o que interessava era ir directo ao facto e só depois o compreender, tudo isto num processo rápido, muito rápido.
-Aquele, mãe.
E foi aí que tudo desabou.
Ponto.
Ou continuamos?Enfim, o encanto de uns é a tristeza de outros, já a minha avô contava.
Continuaremos que eu não sou homem de deixar a meio uma “estória”, mesmo uma tão insignificante como esta. Mas toda estória é uma estória não é? E não há quem diga que se aprende um pouco com toda a gente? Então, a ver vamos o que se extrai daqui.
-Aquele, mãe.
E foi aí que tudo desabou.
Em cãmara lenta, pode-se ver a cara da mãe horrorizada, como qualquer mãe de classe média-baixa que vive no pecado da culpa diária e sem prenúncios de vir a salvar-se dela.
Enquanto o filho ( e agora vamos seguir lentamente também) ergue o bra ç o, l e n ta mente, a cara da m ãe co me ça a esbo çar um a e xpr ess ão de horr or. Afinal o filho não tinha sido tão bem educado para seguir de classe social, ou sequer para se manter, como julgava. E ainda por cima na casa do senhor! Se pararmos o filme por um segundo, vemos a cara da mãe, com os seus óculos comprados há 30 anos pelo pai na altura do seu casamento, de boca aberta soltando um grito mudo de desespero, enquanto ele aponta para o chapeu cordesangue-chouriço-olharenternecido.
Foi neste momento que ele teve a noção que não mandava no seu tempo e muito menos no seu espaço. Afinal, ele não obrigara ninguém a levantar-se para que pudesse ver, apenas erguera o braço, tornara erecto ( sem segundas intenções por favor) o dedo indicativo e apontara para o objecto da sua concentração.
A mãe nunca se sentira tão humilhada na sua vida. Sabia perfeitamente que alguém haveria de ter visto, e que havia de ser comentado e que ainda haveria de perder alguns dos seus restauros nos vestuários que recebia. E logo da mulher do presidente da junta, que queria tudo mais rápido do que as outras todas.
A partir desse momento, Júlio, assim se chama um personagem da minha simplória narração, achou que era desumano fazer com que a sua mãe passasse por aquela vergonha social, só porque ele se tinha lembrado de se associar um chouriço a um chapeu. E sangue.
Então, logo que pôde, saiu da aldeia onde a sua mãe morava, para nunca mais a ter de fazer passar por uma humilhação deste tamanho.
Júlio era ignorante, mas não era burro, insisto. Tinha noção da sua própria insconciência e assim como assim, apesar de não se importar muito com a mesma, preferia que a sua pobre, a todos os níveis, mãe não sofresse com isso. Afinal, ela tinha-o criado sozinha.
Se perguntam pelo pai, morreu na guerra do ultramar. E mesmo isso não fez com que odiasse o regime da altura. Dizia que Salazar é que sabia, porque ele zelava pelos ideais fundamentais e que “toda a gente é que devia ser como ele”. Odiava os pretos, isso sim já que tinham sido eles que o tinham morto, segundo a carta oficial recebida em casa, que a fez chorar dias seguidos e usar um véu preto até ao dia em que finalmente não abriu os olhos.
É, normalmente as pessoas choram de dor e de tristeza, mas Júlio sabia já que o choro da sua mãe não podia ser disso.
-É disso sim, é que o teu pai é uma grande perda...
Júlio não entendia, mas aceitava. Com 5 anos não lhe restavam muitas mais hipóteses e também não fez grande caso do assunto. Lembrava-se pouco do pai, que antes de ir pa guerra era camionista e cheirava muito a bagaço. E chegava a altas horas da noite. E cheirava a bagaço. E batia na mãe. E cheirava a bagaço. E batia nele.
Dona Evangélica, que de evangêlica tinha muito pouco, já que se considerava uma plena cristã e adoradora de todas as formas que existem em contemplar o nosso senhor e muito mais do que isso, tudo aquilo que o rodeia, como os arranjos florais ou as músicas que avidamente decorava, chorava principalmente de agonia, porque agora era apenas um salário que entrava em casa e ao invês de ter algumas noites de solidão, restava-lhe o resto da vida. Bater era o menos, sempre pensou ela. Porque ele até era um bom marido e punha comida na mesa. E trazia doce de avos com vinha de aveiro ou um quarto de leitão pelo Natal, quando parava mealhada, que o leitão é caro e é para ricos.
A verdade é que Dona Evangélica poderia ter tido uma força muito maior no desenrolar da estória, mas Júlinho, como ela carinhosamente o apelidava muito de vez em quando, deixou-a quando fez quinze anos.
Decidiu sair de Açougues – e agora vamos começar a conteztualizar o espaço porque senão vocês desanimam – para ir até Celorico de Basto, no seu entender, uma grande cidade, que Júlio não era burro, mas como já sabem, era ignorante.