Cheio
Não se conheciam.
Fingiam que os corpos eram apenas o interesse mútuo, pelo silêncio que a vida tantas vezes representa. Por isso mesmo, não queriam ser nada um do outro. Não se conheciam, não se tocavam, mas fingiam. Era essa liberdade, por detrás de um olhar despercebido, um toque sem mágoa.
Não havia dor, não havia violência. A vida era
aquilo. Era isto. Uma luz sem cor, um
sorriso dentro de um jardim.
“Não é como começa, mas sim como acaba”. As
frases soltas, como se tivessem sido escritas pelo Saramago, enquanto bebia um
café pingado com a Pilar. Não saberia nunca quem seria o Saramago. Não quereria
tão pouco. Escrevia o nome, porque lhe pediam, na fábrica. Todos os dias, algum
papel para assinar. Papel timbrado, papel que não lhe pertencia, mas que representava
tudo aquilo que ainda não tinha perdido.
E assinava sempre Fernando Antunes.
Uns dias pior, outros igual. Melhor seria uma ilusão. Era tudo o que
sempre quis escrever. Sem mágoa, sem tristeza. Mas a vida tinha deixado de ser
isto.
Bem ali, no jardim, onde escolhera ficar.
Drogado pela beleza, que é não ter que esperar mais nada da vida, a não ser que
fosse levado. Talvez para um mar, talvez um pouco profundo. Era isto.
Não tinha saudades dela. Quando ela morreu,
não chorou. Era um homem e a vida ainda era aquilo. Não se importava com as
escolhas, deus havia de tornar tudo certo, não estava preocupado. Estava cheio
com as memórias que ainda tinha para idealizar. Com o futuro que nunca chegou e
que por isso mesmo, não o decepcionou. Deixou de ir para a fábrica, não por ela
ter morrido -sim morrido, as pessoas fazem-se de vida, mas também de morte. Não
é duro, não é complicado. E algumas nem chegam a saber o que isso é – mas por
entender que não havia mais nada para além disso. Sobriamente, a flutuar, a
sentir-se inebriado por finalmente não precisar de mais nada, para além daquele
jardim.
Quando adormecia, não voltava mais. Mudou-se
para o maior quarto da casa, onde sempre se encontrava. Precisava de sonhar,
mas sozinho. O contrato que tinha assinado, já nada representava. Lembrava-se
ainda: “Sim, aceito”. Ali, na presença de Deus e dos apóstolos em que não
confiava. Todos vestidos com as melhores roupas, que ele pagou. A comer da
melhor comida, que ele também pagou. Serenamente a beber o vinho e a olhar para
a sua esposa, que ele também pagou.
“Dinheiro compra tudo”. Era o pai, forte como
ele, que o orientava. Agora, também ele tinha sido enterrado, pelo que não
havia mais a quem dar esperanças. A esposa – como sempre a tratara- continuou
no quarto antigo. Sem mágoa. A vida também era isto para ela. Continuava
bonita, carinhosa e cheia de tudo. Sabia que ele nunca a tinha querido
verdadeiramente, mas agradecia-lhe por nunca o ter demonstrado
verdadeiramente. Estava cheia, morta, por ela ter morrido finalmente e por
poder descansar. Em paz.
Lembrava se de ter encontrado as flores. Uma
fotografia. Uma assinatura. Antónia. Sabia que era um nome feio, mas não
conseguiu deixar de achar uma certa graça - A mulher que ela nunca seria, tinha
um nome bem mais feio do que o seu. E por isso mesmo, quando ela morrera e ele
saíra do seu quarto, com as flores, as fotografias e um soluço de solidão,
ficou cheia.
Ele quando levou as flores, já estava cheio.
As que lhe dera, antes de ter de aprender a escrever o nome e ser apoderado
por essa responsabilidade, que é gerar mais do que aquilo que se suporta.
Recordava-se vagamente de nunca lhe ter tocado, mas de a ter sentido. Enquanto
fugiam e contavam histórias que nunca ouviram antes. Imaginação e a partilha
ser apelidada de amor e paixão. Não havia sexo. O desejo é para os incautos, a
fome para os que não estão saciados. E aquela vida deixava-os cheios. De tudo e
de nada.
“não poderemos estar juntos mais”.
“não apressemos o destino. Isto ainda é
muito.”
E foi assim. Nunca mais falaram. Nada mais comentaram. Ele começou uma vida
nova, com alguém que poderia estar ao seu lado, nessa vida de luxo e seda, que
ela não poderia partilhar nunca. Garfos para refeições, empregadas que ela
nunca saberia orientar, contratos que nunca saberia assinar.
Trabalhou na fábrica. Nunca se falaram.
Estavam cheios, entre o ruído das máquinas e ainda conseguiam saber o que
sentiam. Que a vida era aquilo, mas que a incerteza que a morte traria, poderia
resultar num reconcilio com a felicidade.
Como se a vida fosse sobrevalorizada e o resto, o que vem depois, é que
contasse.
Quando ela finalmente desapareceu, enterrou-a
com os ramos azuis, de alfazema, que ela sempre lhe trazia, quando ainda eram jovens
e ele não sabia escrever. O seu nome.
Ali, no meio daquele jardim, sabia bem o que
queria, sabia bem o que esperava. Estava ansioso por saber afinal, como
acabava.