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Thursday, January 27, 2005

Fernet

Tempo. O tempo foge-me por entre os dedos, como partículas envoltas numa voz que nunca cessa, evocando memórias, trazendo gente grande a um mundo pequeno - o meu mundo. Devíamos ser capazes de controlar o tempo, ao invés de lhe sermos subservientes, de o tentarmos seguir, sem nunca compreender a sua integridade. O tempo é matreiro, envolve-nos numa perseguição constante acabando por nos deixar entregues à nossa própria solidão.
Aqui, onde estou, o tempo continua-me a fugir, por entre os dedos como a areia que piso, como o olhar que me tenta, o sorriso que me abraça e ilude. A falta de tempo deixa-me perdido, porque não me dá espaço para encontrar todas as sensações que me permito a alcançar. Queria agarrá-lo, absorvê-lo, tornar-me parte dele, ser o seu filho pródigo e nunca mais ter de me preocupar em segui-lo, em rastejar por ele.
É o tempo que não me faz esquecer que não sei onde permaneço, neste lugar onde as ideologias foram invertidas e ao invés de se adorar um Deus, venera-se Marx e onde o seu filho omnipotente vigia tudo e todos calando aqueles que o tentam ultrapassar.
Queria muito compreender a consistência do tempo. Roy no transcendente "O Deus Das Pequenas Coisas" afirma que "tudo pode mudar num dia". No lugar onde me encontro, onde não me reconheço nem me procuro, onde não há marcas de um colonialismo contemporâneo e onde as minhas memórias não tem lugar, o tempo continua-me a fugir, porque não tenho capacidade para o encontrar, talvez revoltar, determinar o que sou, quando sou e porque o sou. Confundem-me com um Inglês e tratam-me mal. Aqui não gostam dos ingleses, e no intervalo da confusão olham-me com pena, por ser apenas uma partícula comandada por esse pote de intervenções burguesas que é a América.
Alguém me explica que a miúda que me serve à mesa faz parte de um povo traumatizado pelas constantes invasões do chamado mundo ocidental, que no fundo acham que eu sou mais um turista superficial que vai acabar por tentar conseguir alguma coisa delas e acabará por se ir embora sem deixar memória. Isso só me deixa mais motivado para tentar conseguir a simpatia de alguém que é movido pelo Comunismo, como em Portugal o somos pela Igreja, onde tudo é um teste, mesmo o tempo que o tenho para o conseguir.
Envolvo-me em jogos de sedução, espreito a sexualidade que este povo evapora, mostro-me sem que nunca me toquem e no fim espero pela sua aceitação. Delicio-me com o alcoól e com a recente descoberta que foi o Fernet e todo o sabor que me conduz. Mergulho de cabeça em diferentes culturas, troco opiniões, opções de viver a vida e acabo por perceber o quanto ainda tenho para aprender, "porque tudo pode mudar num dia" e ainda assim pareço envolto numa luta permanente contra o tempo. Afinal o que é uma semana para se tornar um momento mais do que fugaz da nossa vida? Queria permanecer aqui o tempo necessário a descobrir os defeitos que tudo que é tocado pelo Homem tem, sem ter de lidar com os meus medos, as minhas paixões e tudo o resto que envolve o nosso percurso.
Cecília numa das conversas, pronunciadas num Inglês com sotaque a Argentina, diz-me por entre um hambúrguer e um "Tiger" que sou um idealista. Não procuro conhecer a origem do adjectivo, mas acho que soa bem, assim como sonhar, dançar, esquecer simplesmente que somos controlados em todas as nossas acções, onde há sempre alguém que nos vigia e pouco a pouco vamos perdendo a nossa identidade.
De vez em quando, dou por mim a esquecer-me que estou controlado mesmo ali, quando me envolvo com outro corpo e experimento sensações novas, com o céu negro e estrelado como pano de fundo.
Não há televisão para me entristecer com algum adolescente que foi expuslo de casa apenas por não gostar das mesmas coisas que os pais gostam, não há telemóvel para alguém me tentar amarrar a uma relação vazia, não há nada que me remeta para uma realidade pré-existente e por isso sonho, consciente de que tudo tem o seu tempo e eu acabarei finalmente por acordar. Mas eu não quero acordar e agarro-me a esse sonho que é poder ser o que eu sou, onde estou, sem que ninguém me tente.
À noite, sou um espectador atento e partcipante, entregando-me à fama conseguida apenas por ser o único português no meio de tanta gente que simplesmente não o é. E quando olho para trás, já só tenho metade do tempo para fazer tudo aquilo que toda a gente gosta de fazer. Vejo-me a conquistar amigos , a trocar o português por um espanhol rafeiro e um inglês comodamente aprendido na MTV, a habituarem-se que gostem de mim, a habituar-me a gostar de alguém.
Judite, uma bailarina que acaba por me ensinar o prazer que é saber dançar essa dança que nos arrasta para o sexo descomprometido (salsa) diz que a maior parte da população gosta da vida que leva, porque embora pobre é "uma vida íntegra sem que ninguém que não seja daqui tente fazer de nós aquilo que não somos". E de repente já sou um deles e acabo por ser mais um partcipante dos jogos em que mostramos aquilo que sentimos. No fim, acho que gostaria de ficar cá por mais tempo, para descobrir se o sorriso que me abraça é de facto meu e nunca mais ter de ouvir as vozes que nunca cessam, que nunca apagam como a luz que nunca funde, como as traças que dia a dia nos tornamos.
É o alívio que me segura a este lugar, é o sonho de voltar e ser melhor que me faz sentir a saudade. Como diria Cesária Évora " Se vou a escrever, muito há a escrever". Enquanto o tempo não terminar, não vou parar...

Alívio

El frescor nocturno,
las estrellas altas,
los árboles inmóviles,
la luz del alma
ardiendo sin palabras.

miro a las nubes y pienso:
hay otro lengueje.

Las palabras hablan
con nuestras bocas.
Se alimentan de nosotros.
Nos sepultan, prosiguen.

Las palabras toscas, ilustres,
que tan enormemente han servido.

No pienso en nada y pienso
(mirando a las nubes):
hay otro lengueje. Cintio Vitier