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Thursday, April 08, 2004

Piii, 07:00 Horas e o despertador a ordenar que Evaristo se levantasse da cama. Tem vinte anos, mãos calejadas pelo trabalho que a vida lhe foi proporcionando e rugas de alguém com pelo menos mais dez anos, fruto de dois filhos que achavam que a melhor maneira de combater a dor de ouvidos era gritarem o mais alto possível.
Evaristo abre os olhos e volta-os a fechar. "Merda de vida, pra quê acordar?", pensa para si próprio. Longe iam os tempos em que a sua vida se fundia e confundia entre a realidade e o sonho, em que a vida não era mais do que um jogo de berlindes ou uma noite bem passada na folia bairrista do Santo António.
Casara-se novo, para fugir a um trabalho de escravo, mas depressa se apercebeu que era apenas mudança de patrão.
Voltou a abrir os olhos e viu a mulher com quem se casara. Fora tão depressa que ainda não tivera tempo para a conhecer. Vigiou-a durante alguns segundos a dormir o seu quinto sono devido à licença de pós-parto. Levantou-se, vestiu a farda do restaurante onde fazia quase tudo, passou pelo quarto das duas coisas que mais amava neste mundo e que procurava cuidar como nunca o tinham criado; empregou toda a sua ternura num beijo paterno e dirigiu-se para o emprego.
"Despacha-te que tens muito trabalho", lembrava-lhe o supervisor, quelhe fazia vir à memória o seu patrão de infância que muito lhe exigia e pouco lhe pagava.
Os dias de Evaristo eram muito semelhantes. Cumpria com aquilo que lhe era exigido, para no dia seguinte acordar para a mesma realidade. Deixara de sonhar, deixara de colher flores ou de escrever cartas imaginárias à sua mãe. Deixara de ser resignado, deixara de ser inocente, deixara de ser tudo para conseguir ser aquilo que sonha que devia ser, um bom chefe de família.
Mas tudo isto desapareceu para bem longe quando ela entrou. O dia era feio e cinzento, daqueles em que não apetece sair de casa, mas tudo lhe pareceu mais luminoso quando ela entrou, tudo lhe sorriu, tudo fez sentido e deixou de ouvir o resto dos clientes ou o patrão que muitas vezes parecia não ter coração para se centrar naquela mulher.
De repente parecia a mesma criança ingénua que ficava fascinada com tudo o que a cidade lhe oferecia. Ficou fascinado com o que ela fazia e pela energia que roubava a tudo o que era ser humano à sua volta. Sentiu-se fascinado pela forma como pediu um simples "cachorro especial à moda da casa", mas principalmente pela mala igual (sera mesmo?) à que a sua mãe sempre usara e por uns olhos azuis, profundos como o mar e sentiu-se ali memso a afundar e esperou nunca mais acordar. Foi amor instântaneo, daqueles próprios de novela mexicana, sentindo-se ainda mais encorajado pelo facto de ela vir sozinha.
Não compreendia bem o porquê daquele sentimento, mas que tinha a ver com a forma como olhava tudo à sua volta, tinha. Lembrava-lhe a mãe, dotada de um olhar vazio que nunca se perdia e o facto de ter uma carteira "Jean- Paul Gautier" falsificada, igual à da sua mãe, ainda intensificava mais esta proximidade.
A vida de Evaristo começou a fzer sentido. Já não era o despertador que o acordava, mas sim a rotina, na esperança de a voltar a ver. Continuou a amar os filhos, mas passou a ouvir a mulher apenas quando esta ressonava como se de um camião se tratasse. Ao seu lado Evaristo sonhava em tocar aquela mulher, em tê-la para si e só para si. Quando acordava sentia os seus dedos a tocar a luz da manhã como se da primeira vez se tratasse. "Eu estou vivo", afirmava. E de facto estava.
O seu objecto de fascínio voltava várias vezes ao restaurante e todas as vezes Evaristo respirava um novo ar e parecia ter, realmente, vinte anos.
Voltou a sonhar, a viver por entre as pequenas alegrias da vida e das flores que desenhava no seu coração, para mais tarde, em sonhos, as entregar.
Voltou a desenhar na sua imaginação cartas à mãe e voltou a sentir a sua presença e todas as vezes que via os olhos do seu objecto de fascínio, apaixonava-se novamente e sussurrava à mãe o quanto sentia, ainda, a sua falta.
Viveu o resto de alguns anos novamente entre o sonho e a realidade, onde não há limites, fronteiras e netre a saudade que sentia da mãe e o desejo carnal e profundo que sentia por aquela mulher que o fez acordar.
Nunca a conheceu, nunca soube se ela gostava das piadas do Raul Solnado, de passear no Chiado ou deixar milho às pombas que habitavam a cidade, mas também nunca passou a saudade que sentia da mãe para o mundo real. Decidiu, enfim, viver entre a memória da mãe e na ilusão que aquela mulher concentrava em si o reflexo de tudo aquilo que nunca havia tido, aquela mulher, afinal, era razão do seu acordar.



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